quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Memórias de Joca


NAQUELA NOITE, BEM ALTO NO CÉU SOBRE CANIL, TODAS AS ESTRELAS DA CONSTELAÇÃO DO CÃO CONTINUAVAM A BRILHAR; MAS PARECE QUE HAVIA MAIS UMA!

  • CAPÍTULO UM -Meu nome é Joca. Tudo começou há muitas luas, muito tempo. Meus pais moravam no interior, numa chácara. Tinham Imageboa alimentação e o cuidado protetor dos seus donos. De uma ninhada de quatro, éramos dois machos e duas fêmeas. Não existe nada mais bonitinho e fofo que um cachorrinho novo. Por isso quando nascemos, mal abrimos os olhos apareceram os pretendentes. Chacareiros vizinhos ganharam Duda e Tica, minhas irmãs. Nunca mais as vi e nem esqueci a tristeza de minha mãe. O Coleirinha, meu irmão, os donos não o deram. Eu fui dado para uma família de uma cidade. Ainda pequeno fui separado de minha mãe. Se ela já havia chorado com a ida das minhas irmãs, no meu caso não sobraram mais lágrimas. Dos quatro filhotes só lhe restou o Coleirinha. Mas vida de cachorro é assim mesmo, seu destino pertence aos humanos. E muitas vezes é um triste destino. Antes de partir, lembro-me das coisas boas que meus pais contavam sobre viver na chácara. Tinham liberdade completa. Só como diversão, corriam atrás das galinhas. Perseguiam pequenos bichos do mato como raposas, coelhos e gambás. Depois havia o refrescante banho no riacho. A comida era farta junto com o carinho dos donos. A família que me ganhou morava numa grande cidade. Ali tornei-me festa para as crianças. Não é comum médicos recomendarem “um cãozinho” para descontrair humanos? Eu fazia até isso, aliviava o estresse dos adultos na casa. Meus donos da cidade, em certos fins de semana, viajavam para o campo ou praia. Achavam engraçado eu, pela minha agitação, saber quando se preparavam para as viagens. Nós, os cães, só nos falta falar. Entendemos mais do que os humanos pensam. Temos sentimentos. Nos alegramos e sorrimos. Quando é preciso ficamos bravos. Se estamos tristes e depressivos, choramos. Como todo cão é fiel, nossos sentimentos nunca são fingidos, são autênticos, verdadeiros. Nossas caudas demostram nossa alegria. Mas se as cortaram, nossos olhos silenciosamente dizem tudo. É feliz o humano que sabe interpretar o olhar e os sentimentos de um cão. Até Roberto e Erasmo, reconheceram isso em uma de suas belas canções : ...”Eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo...”
  • CAPITULO DOIS - Nas viagens com meus donos, aos pulos e latidos eu fazia uma farra no carro. Entretanto, o mesmo veículo que me alegrava quando eu sentia o impacto do ar fresco nas minhas narinas, me lembrava o perigo que representava para nós, os cães. Quantos bichinhos inocentes atropelados pela estrada, uma carnificínia! Culpa do cão? Culpa daquele dono que não cuidou dele, não o prendendo quando necessário. Ou pior, culpa daquele que, pensando esconder seus desumanos atos, sob a escuridão da noite se desfez de seu cão sem ter compaixão, deixando-o desprotegido numa estrada, rua ou praça. Pagando com esta traição a leal amizade e o carinho que recebera. Tal ato de covardia não permitiu àquele “humano” a coragem de olhar pelo retrovisor enquanto fugia às pressas com seu carro. Ele sabia que talvez não aguentasse ver um inocente e fiel amigo, que sem entender nada, desamparado, inutilmente corria com todo seu fôlego para tentar alcançar o veículo, que ficava mais distante até sumir. Ah, o cãozinho nunca o alcançaria, porque era apenas um cão e o carro tinha muitos cavalos no motor, e tornava-se inalcançável porque ainda tinha um...um... - para dizer pouco - um insensível no volante. Aquele “humano” não teve coragem para ficar e, escondido, ouvir a voz lamentosa do cão traduzida nos uivos da solidão, do abandono, do sentimento de perda, naquela triste noite e nas seguintes. E assim, com a fome e a sêde - que não doía tanto quanto a ingratidão - mais um cão farejaria todos os dias metro por metro de uma rua, de uma praça ou de uma estrada para encontrar o cheiro daquele que, por seu ato, não mereceria mais nada; nem vindo de um cão. Ah, se os cães falassem! Para cada um, magro, triste e doente, perambulando com fome e sêde ao relento, ou morto no trânsito das cidades e das estradas, haveria sempre uma história, não muito bonita, para ser contada sobre um “dono”. Eu conheci milhares de histórias desses injustiçados. Mas vou contar a minha, que com certeza é parecida aos daqueles milhares.


  • CAPITULO TRÊS - Quantos anos vive um cão? Depende do dono, das circunstâncias e dos imprevistos. Eu vivi, alegremente, muitos sóis, muitas luas, com aquela família numa casa. Sempre alimentado e bem cuidado. Havia banho, tosa, e as vacinas com as idas ao veterinário. Quantas vezes me vestiram com roupinhas engraçadas! Como ocorre com muitos cães que têm donos bondosos, eu era considerado como se fosse um membro da família. Minha vida era uma festa! Mas a vida dos humanos mudam, e a dos cães também. Certo dia, a família resolveu mudar-se para um condomínio de apartamentos. Vida de cão em condomínio não é fácil. Há implicância. Para a grande tristeza das minhas crianças e dos meus donos adultos, eu não podia continuar morando no condomínio. Na vida de um cão nessas ocasiões sempre aparecem os interessados de plantão. Muitas vezes é só interesse momentâneo, porque no primeiro xixi que fazemos onde o novo dono não gosta, lá vem chutes e xingos. Infelizmente nós, os cães, não sabemos ir no WC, como os humanos. Então, um “amigo” dos meus queridos donos me ganhou. Minha vida mudou totalmente. Nem banho nem tosa. Veterinário? Nem pensar! Não tinha mais ração. Se quisesse, havia apenas sobras de comida de humanos. Vieram os maus tratos. Não demorou muito, numa noite, fui deixado traiçoeiramente numa praça. O “amigo” dos meus ex-donos fugiu às pressas com seu carro - como sempre faz quem “leva” um cão para sumir com ele. “Levar” é uma gíria feia, deprimente, que define tal ato.

  • CAPITULO QUATRO - Sofri. Errante, perambulei pelas noites e pelos dias sem comida e água. Escorraçado levei chutes e pancadas. Fiquei quase pele e osso. Como ripas expostas, dava para contar minhas costelas. Muito do meu pêlo caiu. Quando alguns tinham dó, às vezes, me jogavam um pouco de ração e me aplicavam algum remédio ali mesmo na rua. “Tadinho” - diziam. Meu teto era o céu. À noite eu tinha a lua como companheira. As estrelas, lindas, me faziam meditar. Ah, como eu desejava ser uma delas e estar brilhando no espaço, lá na Constelação do Cão! Então, eu ria deste meu sonho absurdo e voltava à realidade, tendo a saudade, a lembrança e a solidão como os meus cobertores contra o frio e a chuva. O gostoso cheiro dos meus primeiros donos, no meu faro enfraquecido, se perdera no tempo. Eu estava envelhecido, perdendo a visão, e me restavam poucos dentes. Foram muitos e muitos dias nos quais o medo superava a esperança. Mas me restava um consolo: a culpa não era de Deus, o meu Criador; era de humanos que não cumpriram o sagrado dever de cuidar de seus animais domésticos. Certo dia, após ouvir os latidos aflitos dos meus colegas na rua, senti de repente um laço apertando meu pescoço. Parecia um arame me sufocando. Com aquele aperto na garganta fui erguido e jogado de qualquer jeito dentro de um veículo que até as crianças conhecem: a famigerada “carrocinha”. Ninguém gosta dela. Mas cumpre o papel de livrar as ruas e praças dos cães “vadios”. Vadios? A verdade é que todos aqueles meus colegas, certamente, tinham ou deveriam ter um dono. Se foram abandonados de quem era a culpa? Os cães são inocentes, porque são dependentes dos donos. Mas se há “humanos” que descartam até seus filhos, imagine o que não fariam com um cão!

  • CAPITULO CINCO - A “carrocinha” estava cheia de colegas. Cada um com uma história. O Banzé, fora do seu portão bisbilhotava a rua quando foi capturado. Não parava de chorar. Suas crianças viram de longe quando foi laçado. Eu o consolei. Ele estava arrependido por ter desobedecido e ido para a rua sozinho. Mas agora era tarde. Fomos levados ao canil. Canil de departamento das zoonoses das grandes cidades é como um campo de concentração onde, na média diária, várias dezenas de nós somos mortos para darem lugar a outros que são continuamente capturados para igual destino. É lugar de matança contínua. Naquele canil, eu e o Banzé ficamos na mesma “cela”. Passou uma lua e um sol. Eu não tinha esperança de nada. Jamais meus primeiros donos apareceriam, pois nem sabiam se eu ainda existia. Mas o Banzé e outros, com os olhos fixos nas grades, esperavam um resgate. Havia aqueles que contavam com a chance de uma adoção. Eu não. Passou outra lua e outro sol. Nada. Depois da terceira lua, quando o terceiro sol surgiu, para a alegria do Banzé, seus donos apareceram e o resgataram. Disse-me com lágrimas: “Meu querido velho... nunca o esquecerei”. Houve grande emoção ao despedir-se dos outros. Prometeu que nunca mais iria sozinho à rua. Alguns poucos foram adotados. Mas quem adotaria um cão velho e maltratado pela vida como eu? Passou o terceiro sol e veio a quarta lua. Quando surgiu o quarto sol, os carrascos do canil apareceram na minha cela. Não faziam aquilo com sorrisos. Entendi que, como os laçadores de cães da carrocinha, eles também precisavam ganhar o pão. Fui levado para o local do sacrifício. Amedrontado e confuso pensei: “Antigamente éramos mortos numa câmara de gás, como o cruel Hitler fazia com os indefesos judeus. Agora há método novo e morremos com uma rápida injeção letal. Os humanos ficaram mais bondosos!” Me lembrei das palavras com as quais Deus, o Criador dos humanos e dos cães, adverte seriamente os homens nos Provérbios da própria Bíblia Sagrada deles. Gente!, eu ouvia meus antigos e bondosos donos lerem na Bíblia: “O justo importa-se com a vida dos seus animais domésticos, mas as misericórdias dos iníquos são cruéis.” Em seguida, senti uma picada fina, a da última agulhada da injustiça que a vida me dava. Não conseguia contar mais nada porque já estava sentindo os efeitos da injeção mortal que fazia meu coração parar. E, ainda desejando tanto ter sido uma estrela do céu...eu...

NAQUELA NOITE, BEM ALTO NO CÉU SOBRE CANIL, TODAS AS ESTRELAS DA CONSTELAÇÃO DO CÃO CONTINUAVAM A BRILHAR; MAS PARECE QUE HAVIA MAIS UMA!

MEMÓRIAS DE JOCA

Literarura brasileira - Conscientização, proteção animal

Autor John Fellinus - autor brasileiro - Copy©right : Nillo Gallindo - Extrema - MG

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